6 de fevereiro de 2019
a cigana
olhei nos olhos dela bem fundo. tive medo de alguma reação, mas não teve. ela tinha um dos olhos azul, muito azul, tanto que até hoje eu me lembro. o outro não, era verde. me estiquei e de ponta de pés perguntei a eduardo, como quem cochicha, porque ela estava olhando pro nada. "ela é cega" ele respondeu como quem cochicha ainda mais rápido. fiquei pensando em como ela chegou ali sozinha. minha casa tinha chão de cimento batido, na sala tinha dois sofás, um de frente por outro. minha mãe parecia tensa e pediu que a mulher sentasse num dos sofás. ela pareceu sair de um leve susto e sentou. sentamos, eu e eduardo, de frente pra ela. continuei olhando para seus olhos mas ela nunca cruzou o olhar comigo. eduardo não falava nada mas estava distraído com qualquer outra coisa. eu não conseguia parar de olhar para ela. começou a tocar pavão misterioso muito alto no quarto da minha vó. mais uma vez ela tomou um susto rápido e virou a cabeça em direção de onde vinha o som. me assustei quando ela virou a cabeça. prendi um grito. minha mãe estava em algum lugar da casa quando minha vó apareceu. corri para o lado dela, puxei sua saia e a chamei para o quarto. o quarto de vovó tinha uma cama com lençol verde, cheiro de alfazema, chá e naftalina. e um retrato enorme do meu avô ao lado de uma foto de jesus. achava aquilo engraçado. às vezes meu avô parecia deus. ele tinha morrido antes de eu nascer. vovó disse resmungando "tua mãe fica chamando essas ciganas". cigana. não sabia o que era. "o que é cigana, vovó?", perguntei. vovó me respondeu com um muxoxo e me mandou sair do quarto. acendeu um cigarro. quando cheguei na sala, minha mãe e a mulher estavam indo para o quarto dos meus pais. eduardo continuava sentado no sofá. estava com as mãos no queixo. sentei ao seu lado e falei baixinho "vovó disse que ela é cigana". ele me olhou surpreso e se levantou do sofá, me chamou para ir junto até o quintal. tínhamos 12 galinhas que começaram a fazer barulho quando abrimos a porta. mas foi rápido. eduardo foi até a janela do quarto dos nossos pais, estava fechada, mas tinha um buraco no canto. foi onde eduardo colocou a cara. ele passou um bom tempo lá e me chamou pra olhar também. a cigana olhava para as mãos de mamãe. depois falava algumas coisas que eu não entendia. minha mãe se levantou e foi até a cômoda, tirou um pacote de cédulas dobradas ao meio lá de dentro e deu na mão da mulher. depois abriu a segunda gaveta, pegou uma camisa de papai e deu para ela novamente. não entendi nada. a cigana guardou tudo dentro de uma sacola de pano e cochichou no ouvido de mamãe. eduardo disse que era a vez dele e depois eu não sei mais o que aconteceu. sei que papai chegou em casa muito bravo nesse dia, pegou as roupas e foi embora de carro dizendo nunca mais voltar. ele voltou três dias depois.
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